Enegrecer a Política … Começo com reticências pois esse sinal de pontuação define os sentimentos e pensamentos que atualmente me atravessam. Dúvida, pausa, emoção demasiada e até mesmo omissão por não poder revelar de forma franca e explícita certas conclusões. Deveria estar contente, afinal houve um aumento substancial nas auto declarações de pretos e pardos no Censo. Somos em média 55% da população, nas eleições de 2022 houve um recorde de candidaturas pretas e pardas. Como contrapartida temos que considerar e estudar esse Despertar da Ancestralidade já que o TSE declarou que aproximadamente 20% dos deputados ‘agora’ negros eleitos, anteriormente se definiam como brancos…( Ah, essas reticências)
Agora vamos nos aprofundar através de um relato como Candidata. Vou compartilhar em primeira pessoa, minhas experiências e observações.
Sou Andreia Souza, uma preta em diáspora, mãe solo, artivista, paulistana residente no Nordeste desde 2000. Apesar de acompanhar, dialogar e atuar politicamente praticando a militância, foi somente em 2020 que coloquei meu nome pela primeira vez à disposição. Nada nos prepara efetivamente para o processo eleitoral em confronto com a Realpolitik. Mesmo que tenhamos formação específica e mentorias, o processo é uma experiência pessoal e intransferível. Teorias, planos de ação, estratégias sofrem total desconstrução no cenário real.
Lembro que em 2020 tive que recorrer para manter-me Preta, fui inscrita como parda. Foi necessária muita paciência e persistência para alterar o registro já que para a cúpula partidária do período não havia diferença entre ambas identificações. Posteriormente, fui denunciada através do aplicativo Pardal por exploração de trabalho infantil de minha própria filha. Num ano pandêmico, sem escolas, sem rede de apoio, minha filha com sete anos na época me acompanhava no ato de colocar cartas com nossas propostas nas caixas de correio. Perdi as contas da quantidade de vezes que durante campanhas, candidatos ‘homens’ levavam seus filhos e os exibiam nas carreatas e discursos, acentuando com isso seu caráter e perfil de cidadão exemplar. Lembro de ver na campanha de 2018, o slogan de uma candidata: “Lute como uma mãe”. O que é exaltado e visto como exemplo para uma parcela da sociedade para outra se transforma em contravenção passível de penalidade. Na verdade, o que nos invade é um sentimento de não pertencimento e total exclusão. O processo eleitoral nos modifica para sempre.
E daí chegamos ao ano de 2022. Dicotomia instalada de forma completa no país. Rompimentos com amigos, parentes e aderentes. Num cenário de caos, representar minorias pertencendo ao grupo não surte o efeito esperado. Muitos ainda têm a concepção que somente quem está do outro lado pode solucionar os problemas, preferem candidaturas tradicionais, já consolidadas. Se aliam aos que têm sobrenome ou já impunham a caneta que pode garantir um retorno imediato.
Ser mulher preta de base periférica com pautas não tradicionais e até mesmo disruptivas não é uma tarefa fácil. Vou falar em primeira pessoa, esse é o intuito deste relato, um desabafo e uma forma de romper com o silêncio. Candidaturas periféricas fazem volume da campanha, somos o apoio, a escada, a base que contribui para que as candidaturas com possibilidades reais da nominata possam conciliar a matemática. Começamos o jogo no banco de reserva, igualdade não é uma palavra de ordem no processo. Conscientes da insignificância, buscamos formações e processos seletivos para auxílio de campanhas de minorias, tutoriais para eleições low cost. Lembrando que além de low o processo é slow. Afinal, campanhas periféricas são cheias de emoção. Vai ter recurso ou só santinho? Quanto vai receber, quando o dinheiro vai chegar? Tudo é surpresa.
Vi aqui no Rio Grande do Norte (RN), candidatura toda estruturada para Federal ser rebaixada dias antes para Estadual pelo desejo estratégico do dono do Partido. Desejo e estratégia dele sem a concordância do Comitê Nacional. Mas todos se calam e consentem, seguindo o pensar e querer de quem detém o poder e possui o sobrenome correto para representar o Grupo. Desistir não é opção, corremos por fora. Nos reunimos e defendemos pautas para além da mera agenda, nos capacitando para além de lideranças sociais, somos elevadas a lideranças climáticas, levantamos a discussão sobre o aborto. Saímos dos votos confortáveis, abrimos espaço para diálogos necessários, em um período de valores tradicionais em evidência, um ato arriscado.
Como explicar que abordar o tema não tem a ver com concordância ou total adesão ao fato, mas sim que temos que conversar e discutir um fato que mata centenas todos os anos. E as controvérsias só expandem: Calar se diante do tema racismo, não citar a eugenia, não contestar os que insistem em citar o racismo reverso? A regra é sorrir e abraçar, calar e fingir não entender. Se alguém lhe ofender, mantenha- se firme, não reaja, não altere a voz, gritar nem pensar, mulher preta gritando é: raivosa… Não use roupas chamativas. Ao conversar com possíveis doadores evite causas identitárias, tantas coisas para dizer. Tenha foco no macro. Essas instruções obtive e fiz questão de esquecer. A casa grande não me define, se for para ganhar assim, já perdemos desde o início, na essência, no porquê de estar ali e querer avançar.
#umadenós foi a hashtag de campanha. Trabalhamos com uma equipe composta em sua maioria pela dita ‘minoria’. Mulheres, pretas e mães solo. Não as colocamos nas ruas com o sol a pino do Nordeste empunhando bandeiras e entregando santinhos. Observamos decepcionadas a perpetuação desse formato que trata pessoas como meras peças de uma engrenagem sem ter vez ou voz. Nosso grupo atuava em seu próprio território. Elas nos permitem ter vez e foram a nossa voz. Entendemos que é um formato novo e um método arriscado. Afinal, baseia se em confiança. Na política tudo é troca. Aqui no Nordeste, as candidaturas carregam ainda um peso forte do sobrenome e a gratidão por feitos passados pesa na escolha para novos representantes. O cargo político vem como herança, é quase monárquico o processo. O outro viés é o ideológico, por legenda. Estar ausente dos dois pólos, nos coloca em um limbo identitário. Entre esquerda e direita, representamos e somos, mulher preta.
Voltando às primeiras palavras do texto: enegrecer a política, aqui no RN somente uma mulher foi eleita deputada federal e nas demais cadeiras temos o patriarcado latente. Na Assembleia Legislativa, o mesmo recorte, com o atenuante de termos a adição e conquista da quarta cadeira feminina com a ascensão de uma mulher preta. Apesar de tal conquista não obtivemos sucesso ou adesão expressiva das candidaturas pretas e principalmente periféricas. Muito pelo contrário, os números comprovaram que as candidaturas com votos ínfimos foram de mulheres pretas.
Não vou dizer que meu texto é otimista. Mas também não o descreveria como pessimista. Este texto é um recorte em tempo real. Dados e evidências que estamos muito distantes de nosso espaço de direito. Carregamos as decepções e dores que nos foram submetidas durante o processo, assim como sabemos agora com quem andar. Os últimos anos foram reveladores. Tivemos a possibilidade de confrontar o real pensar sem disfarces de uma parcela da sociedade que prefere que continuemos silenciados e subservientes. Temos a missão honrosa de frustrar tais pessoas. Quero sim, denegrir a política. Muitas vezes ao usar este termo sou questionada. Denegrir vem do latim denigrare (escurecer). Quero mais que a política escureça. Não aceito que deixar algo mais escuro seja definido por conceitos racistas .
Liberdade é não ter medo, já dizia Nina Simone. Assim como Carolina de Jesus, não gosto do mundo como ele é, quero modificá-lo. A forma de mudar é através de equidade, inclusão e respeito. Minorias têm que participar do processo não somente como beneficiários. Temos a capacidade, vivência e competência para fomentar a solução. A solução é o despertar de nossos iguais para que nos acolham e escolham como representantes legítimos. Que venha 2024!
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