Identidade racial e eleições

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As eleições gerais de 2022 protagonizaram o primeiro processo eleitoral sob a vigência da Emenda Constitucional n.º 111 de 2021. Esta emenda, dentre outras diretrizes, estabeleceu regras transitórias para distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). No artigo 2º da referida emenda, dispõe da seguinte redação “Para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas de 2022 a 2030 serão contados em dobro.”

Resumidamente, este artigo prevê que quanto mais votos mulheres e pessoas negras receberem, mais recursos financeiros serão destinados aos partidos. Esta alteração visou incentivar o registro de candidaturas de mulheres e pessoas negras e, ainda que timidamente, atacar os alarmantes indicadores que atestam a sub-representação desses grupos.

Outro cenário inaugural protagonizado nas Eleições de 2022, refere-se aos resultados estatísticos apresentados pelo Tribunal Superior Eleitoral, demonstrando que o número de candidaturas de pessoas que se autodeclaram negras, pela primeira vez na história, superou o das pessoas autodeclaradas brancas. Se comparado às Eleições de 2018, em que o registro de candidatura de pessoas negras foi de 46,45%, para as Eleições de 2022, foram 14.712 registros de candidaturas negras, representando 50,27% do total de inscritos.

Em uma leitura rápida sobre o tema, pode-se facilmente concluir que a alteração constitucional alcançou os efeitos esperados, após o fomento de candidaturas negras, termos um aumento no percentual de candidaturas, porém, a realidade apresenta contornos que somente o uso de dados quantitativos não conseguem demonstrar. Num primeiro momento, somos levados a acreditar que temos a inclusão e incentivo de candidaturas negras de forma efetiva, mas quando analisamos quem são as pessoas que se autodeclaram negras, percebemos que esse suposto crescimento merece análises mais discriminadas.

Em um levantamento divulgado pelo UOL1, constatou-se que um grupo de 33 deputados candidatos à reeleição “mudou de cor” ao disputar a eleição deste ano. A notícia informa que em 2018, eles haviam se declarado como branco e em 2022, alteraram para pardos. Como exposto anteriormente, esta modificação influenciará o financiamento da campanha e a entrega do dinheiro público aos seus respectivos partidos no próximo ano.

Procurados pelo veículo de notícias a fim de entender as motivações para a alteração da autodeclaração, as justificativas dos deputados, majoritariamente, estão fundadas em argumentos distorcidos e limitados sobre descendência, como, por exemplo: “Sou pardo mesmo, meu avô materno é descendente de escravo”; “é filho de mãe preta e pai branco, e por isso se classifica e se autodeclara como pardo” e “Não é uma questão de cota, mas de descendência, e me orgulho disso”.

Este cenário acende um alerta para a possibilidade das autodeclarações que, consequentemente, refletirá na distribuição dos recursos aos partidos. Este tema foi analisado por Sabrina Braga2 que afirmou:

A discussão perpassa por temas sensíveis como o racismo, o “mito da democracia racial brasileira”, o colorimos, a afro-conveniência, e soluções possíveis para que a política pública, cujo objetivo é o aumento da representação negra nos cargos eletivos, não seja arruinada pelas tentativas de fraudá-la.”

De todos os possíveis temas que atravessam esta discussão, o presente texto abordará a “afro-conveniência” e o “afro-oportunismo”. A afro-conveniência foi um conceito proposto e denunciado pelo movimento negro a partir da implementação das cotas raciais para o acesso a concursos e Universidades públicas diante dos recorrentes casos de fraudes.

A afro-conveniência se manifesta “em situações em que pessoas de pele branca se autodeclaram negras, quando isso lhe trouxer algo positivo, mas que não se leem e nem são lidas pela sociedade como negras” (BRAGA, 2022). Ou seja, não existe a menor consciência do que é ser negro, tão pouco sabem quais as consequências sustentadas por pessoas, lidas como negras no Brasil. Assim acabam reduzindo toda uma pauta de luta e resistência ao tom de pele, que por sinal, na maioria das vezes é “pardo”.

E o mais desgastante desse fenômeno é que pessoas de pele branca, quando confrontadas sobre suas ações e informadas de estarem agindo por afro-conveniência, logo resgatam algum parente negro em sua árvore genealógica. O que eles nomearam de “descendência” ou “parentesco”, qualquer pessoa letrada racialmente nomearia como mau-caratismo criado pelo racismo. Não é novidade que a branquitude sempre atualiza seus mecanismos para usurpar características, direitos ou, como no caso, ações afirmativas de e para pessoas negras. Inédito mesmo é o cinismo da atitude e a plena consciência da não responsabilização.

Sendo assim, nas palavras de Tânia Regina Pinto3, a afro-conveniência praticada por diversos candidatos nestas eleições é puro oportunismo eleitoral, conforme explica no trecho abaixo:

Afro-conveniência é oportunismo eleitoral puro, elevado à máxima potência. É uma fraude escandalosa sobre políticas públicas conquistadas a duras penas. É racismo institucional, que opera numa lógica de exclusão racial sem evocar a questão da raça, mas a partir de uma naturalização da ideia de pertencimento a determinados espaços.”

E completa suas considerações ao endossar que a prática é uma fraude por se tratar de:

políticas públicas voltadas a inclusão do povo negro na política institucional, acompanhadas de contrapartida financeira para os partidos políticos, a apropriação se escancara ainda mais, comprometendo inclusive uma aferição real dos avanços da população negra na representatividade parlamentar.”

Muito tem se falado na implementação de bancas de heteroidentificação para fiscalizar e conter essa manobra eleitoral e barrar as fraudes cometidas. Importante considerar que a implementação da heteroidentificação, ainda que possamos reconhecer a necessidade de aprimoramentos em determinados aspectos, têm demonstrado eficácia na contenção destas fraudes nas esferas onde são aplicados.

A justiça eleitoral deveria normatizar a existência de comissões de validação das autodeclarações e torná-las obrigatórias, como estratégia de contenção às fraudes. Contudo, esta norma não deveria estabelecer uma responsabilidade apenas para o candidato, mas também vincular de alguma forma: (i) os partidos, que muitas vezes são coniventes com as fraudes, até porque se beneficiam da estratégia eleitoral; (ii) o Ministério Público Eleitoral, para entender a gravidade das fraudes cometidas e investiguem cada caso com a seriedade compatível com o tema e responsabilizar todos os envolvidos e beneficiados direta ou indiretamente.

1. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/08/19/deputados-que-tentam-reeleicao-mudam-de-cor-em-registro-no-tse.htm <Acesso em: 13 de dezembro de 2022>

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