Aprendizados sobre campanhas poderosas que só o nosso povo é capaz de fazer.
Acabamos de passar por uma eleição que registrou recorde no número de mulheres cis e trans, pessoas indígenas e pessoas negras eleitas, mas que também foi a eleição em que mais homens e mulheres que haviam se autodeclarado pessoas brancas em eleições anteriores mudaram sua declaração de raça/cor para parda ou preta. Observando o fortalecimento da estratégias dos movimentos negros para ocupar mais cargo de poder e a reação das pessoas brancas que já ocupam esses cargos para não perder sua hierarquia, precisamos nos perguntar quais práticas temos envidado nos processos eleitorais que podem nos ajudar a mudar o quadro do jogo racial de poder.
Em Pernambuco, 55% das candidaturas registradas, aptas e deferidas eram de pessoas negras, mas os votos direcionados a essas candidaturas corresponderam a quase 40% no pleito a deputades estaduais e 24% na disputa para a câmara dos deputados segundo dados do TSE. No meio desses votos, nós quase elegemos a primeira deputada federal trans do Nordeste. Robeyonce Lima, travesti preta advogada da periferia do Recife, já era codeputada estadual no mandato coletivo das Juntas (PSOL) eleitas em 2018 e, mesmo não eleita por quociente eleitoral, teve mais votos que muitos homens brancos que foram pelo mesmo cargo por outras coligações.
Para entender o fenômeno eleitoral inspirador e emocionante que foi a participação de Rob nas eleições de 2022, é necessário entender o que veio antes. Rob e diversas outras pessoas negras candidatas nos 26 estados do país e no DF esse ano são o reflexo de décadas de luta do movimento de mulheres, do movimento LGBTQIAP+ e do movimento negro que tem feito articulações, pesquisas, campanhas e diversas outras iniciativas para mudar a “estética política”, como diz a intelectual, ativista e articuladora política pernambucana Ingrid Farias. Cada eleição antes dessa, os movimentos sociais e o movimento negro estiveram tentando novas formas de equalizar raça e gênero nos espaços de poder e de construção da nossa sociedade. É também como fruto desse processo de luta que Robeyonce entra na universidade por meio da política de reparação histórica por cotas e chega a ser a primeira advogada trans registrada pela OAB. E também é pelos avanços conquistados pelos movimentos sociais que a candidatura Juntas saiu vitoriosa há 4 anos, colocando 5 mulheres, majoritariamente negras, para construírem coletivamente um mandato na Assembleia Legislativa de Pernambuco.
No mesmo contexto em que a candidatura de uma travesti preta advogada e codeputada estadual para a Câmara Federal recebeu mais de 80 mil votos convictos, Olivia Santana (PCdoB) na Bahia foi reeleita com mais de 90 mil votos deputada estadual e Jones Manoel (PCB) recebeu quase 34 mil votos na sua primeira candidatura já concorrendo ao governo do Estado de Pernambuco, mesmo sendo de um partido sem representação parlamentar e quase nenhum recurso de Fundo Eleitoral, resultado mais expressivo que candidaturas de partidos com maior representação como o PSOL.
Mas então, o que podemos aprender na prática sobre fazer uma campanha preta e de pessoas dissidentes que pode fortalecer outras campanhas pretas e ajudar a mudar a estética política do nosso país? Um primeiro ponto central é entender que a branquitude construiu seus métodos de organização nos últimos séculos e décadas dividindo e setorizando funções. Então é corriqueiro achar que as atividades de rua e mobilização, cara a cara, devem ser pensadas por determinadas pessoas com essa expertise e que os materiais de comunicação, a comunicação digital, os discursos e toda a imagem da campanha devem ser pensadas e executadas por outras pessoas com outras expertises. E isso é verdade, se essas áreas e aspectos da campanha conseguirem se conectar e se retroalimentar. Comunicação preta é a comunicação que ecoa o que vem da rua.
Segundo a coordenadora de campanha de Rob, a comunicadora e ciberativista Larissa Santiago, foi seguida uma lógica de trocas “Rua e Redes” em que as redes sociais indicavam e direcionavam a tática de atividades de rua e as conversas e percepções nas atividades de rua geravam insights para reprogramar o que estava sendo feio nas redes. Um desses insights vindo das ruas nos levam para nossa próxima lição.
O financiamento das campanhas dos partidos maiores e de direita deixa o jogo eleitoral muito desigual especialmente com o uso ilegal desse direito em compra de votos, derrame de santinhos/colinhas como boca de urna e isso dificulta muito para quem conquisa voto ideológico, mas isso não muda a realidade de que a população se importa em votar em pessoas que sejam parecidas com elas e que gerem identificação e que mostrem ser capazes de atuar nessa tarefa. Ao longo da campanha, investir no discurso e em materiais como “Poc vota em Rob” e “não vote em branco, vote na preta” foi importante para reforçar Robeyonce como uma liderança LGBTQIAP+ e negra.
Também já no fim da campanha ficou mais evidente uma dobradinha com o vereador de Olinda, também advogado e candidato a deputado estadual Vinicius Castello, dois negres LGBTQIAP+ com cargos legislativos em Pernambuco que têm se posicionado e ganhado destaque com o seu trabalho. Não precisar fingir uma estética de pessoas brancas e mostrar que pessoas negras dissidentes de sexualidade e gênero podem dirigir sua cidade e estado torna muito mais real o reconhecimento e a vontade do eleitorado de eleger alguém parecido consigo mesme.
Algo parecido está relacionado ao fenômeno da candidatura já citada anteriormente do professor, escritor e produtor de conteúdo digital Jones Manoel que, além de vários materiais reforçando o apelo de reconhecimento identitário inclusive sobre a identidade pernambucana e apesar de não ter espaço nos debates entre candidatos, estourou em visibilidade por um trecho de entrevista em que corretamente afirmou ser “o único candidato ao governo que sabe voltar pra casa se for deixado no [Terminal] Cais de Santa Rita com o [cartão eletrônico de passagens] VEM.”
Candidatos brancos e abastados financeiramente sempre incluíram em suas táticas se aproximar do povo enganando com a possibilidade de ser parecido e de representar. Mas esses votos em Jones, Olivia, Vinicius, e os mais de 80 mil votos em Robeyonce provam que é possível reconhecer quem representa de verdade.
Mais do nunca é hora das nossas candidaturas desobedecerem as expectativas da branquitude sobre como devem se comportar e quais assuntos devem ser tratados. Ecoar o que vem das ruas e se apresentar como parte do povo – igual ao eleitorado – e ainda assim capaz de chegar lá e mudar a política ainda vai semear muitas candidaturas negras LGBTQIAP+ e vai eleger nos próximos anos mais travestis, gays, lésbicas, bissexuais, transmasculinos e várias outras pessoas negras que vão transformar não só a estética das casas legislativas e executivas mas o dia a dia do nosso povo preto com o poder nas nossas mãos.
As eleições gerais de 2022 protagonizaram o primeiro processo eleitoral sob a vigência da Emenda Constitucional n.º 111 de 2021. Esta emenda, dentre outras diretrizes, estabeleceu regras transitórias para distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento […]
Após o feminicídio político de Marielle Franco no ano de 2018, houve um salto positivo de candidaturas negras. Algo surpreendente foi a quantidade de candidaturas coletivas que se formaram em todo o Brasil, principalmente, de mulheres negras que se colocaram na disputa para pleitear uma […]
Enegrecer a Política … Começo com reticências pois esse sinal de pontuação define os sentimentos e pensamentos que atualmente me atravessam. Dúvida, pausa, emoção demasiada e até mesmo omissão por não poder revelar de forma franca e explícita certas conclusões. Deveria estar contente, afinal houve […]